Narradores de Javé

 

Filme: Narradores de Javé

Direção: Eliane Caffé, 2004, Brasil

 

 

O filme Narradores de Javé  conta a história de um povoado que está na iminência de desaparecer do mapa em virtude da construção de uma hidrelétrica. Conhecedores da dramática situação em que se encontram, os moradores reúnem-se  para decidir sobre o que podem fazer  e, assim, tentar evitar a destruição do vale. Chegam então a conclusão de que a única  forma de preservar o local é transformá-lo em patrimônio histórico, sendo, para isso, necessário redigir um documento “científico” relatando os fatos históricos ocorridos em Javé que justifiquem sua importância e, portanto, sua existência.

Toda a história do filme é narrada por Zaqueu que tenta distrair um viajante em um bar à beira de um rio. O narrador, também   personagem, não participa dos fatos, visto que no início da história sai para comprar “encomendas” solicitadas pelos demais moradores. Diante disso, conclui-se que sua versão é fruto de uma outra versão ou, quem sabe, de outras versões, abrigando, portanto, múltiplas vozes, inclusive a do próprio narrador.

O filme revela que é diante da ameaça concreta de inundação do povoado e da necessidade de registros  escritos  para a comprovação dos fatos e, possivelmente,  conforme acreditam os moradores, manutenção do local e da história de um povo, que se evidencia a importância da escrita, até então rechaçada por algumas personagens. Dessa forma, tem início  um trabalho intenso de busca às memórias,  lembranças, enfim, do passado, de toda a história do Vale de Javé.

Para a tarefa de compilar estes fatos, os moradores recorrem a Antônio Biá, apontado pela comunidade como homem capaz de escrever o dossiê sobre o povoado, mas que vivia à margem do lugarejo, por ter se envolvido em “maracutaias”, pois, a fim de preservar seu emprego nos correios, passou a redigir cartas no nome dos moradores sem suas autorizações e após ser descoberto, foi escorraçado do povoado.

O resgate às origens de Javé caminha para a indefinição à medida que Antônio Biá  passa a ouvir os moradores de casa em casa na tentativa de colher informações para produzir uma história verdadeira, “científica”, que tenha credibilidade. O problema consiste em cada entrevistado relatar fatos diferentes acerca dos fundadores de Javé. Nisso, verifica-se um certo humor que reside no fato da tradição oral, que permeia todo o universo dos habitantes de Javé, privilegiar detalhes que favorecem a uns em detrimento de outros, conforme convém a cada habitante. Além das divergências apresentadas pelos diferentes narradores,   Biá destaca ainda um aspecto bem peculiar da escrita ao afirmar que esta  não necessariamente reflete o fato tal e qual acontecera. Para o escrivão,  “uma coisa é o fato acontecido, outra é o fato escrito”.

Por certo, o filme ratifica que não há neutralidade nos fatos narrados, sejam eles orais ou escritos, pois estes terão sempre as marcas de quem os retrata expressas por meio de crenças, visões bastante singulares. Isso é bastante evidente na história, seja no momento em que para uma moradora a fundadora e heroína do povoado seria uma mulher, Maria Bina, ou para um habitante negro que afirma ter sido um negro o fundador, e assim prossegue o enredo: cada um tem sua versão.

Outro aspecto de destaque na comunidade javélica  refere-se  à oralidade da memória, quando um narrador negro canta a história do seu herói, também negro, Indalêo. Nesse canto são pronunciadas as fronteiras de Javé e é este que legitima sua posse e não uma escritura.

Por fim, diante das inúmeras versões contadas, ou cantadas, pelos moradores, e, portanto, da impossibilidade de escrever algo memorável, capaz de justificar a preservação do Vale de Javé, Antônio Biá entrega o livro sem nenhum registro à comunidade. Indignados ,os moradores vão à procura do escrivão que  cobrado e acuado por todos no meio da rua,  sai aos berros andando de costas. Assim,  é somente no final do filme,  ao perceber a inundação do povoado que é  destruído pelo progresso, independente de sua história, da cultura de seu povo, para dar lugar à hidrelétrica, que Biá começa a registrar a história de um povo que não se apagará.

Deixe um comentário